Dívidas (1)

Publicado em 04/11/2015

É triste, Sr. Presidente, reconhecer que entre nós há homens públicos que pensam ainda que o governo tenha outra fonte de recursos a não ser a do imposto, ignorando que um empréstimo é simplesmente um adiantamento de impostos que têm de ser cobrados para pagamento de seus juros e de sua amortização...”

Joaquim Murtinho (Relatório do Ministro da Fazenda de 1901).

A história do Brasil ensinada nas escolas costuma descrever os benefícios para a colônia brasileira decorrentes da vinda para cá da coroa portuguesa, em fuga às tropas de Junot.

Inobstante não se possa desprezar benefícios para a economia, principalmente com a “abertura dos portos para as nações amigas”, a chegada da corte deu origem a uma situação desesperadora, tanto para o bem-estar individual, como na situação financeira das contas públicas.

D. João VI, no dizer de João Ribeiro 1 era:

desmazelo e fútil..., colocando vulgares diversões acima dos encargos do Governo...”

Além disso, fizera-se acompanhar por um séquito de aproximadamente quinze mil pessoas, exigindo, de súbito, o desalojamento de inúmeros brasileiros para que os fidalgos gozassem do maior conforto.

O ambiente social e político então reinante é muito bem descrito por aquele grande historiador:

Honras e dignidades monárquicas, com a perda do sentimento da hierarquia e do mérito, tornaram-se logo ridículas na ridiculez dos seus indignos possuidores. Os bajuladores e favoritos e a numerosa comitiva do rei, aos milhares, sem trabalho aquinhoaram-se em empregos novamente criados pela prodigalidade insensata da corte que via nesse imprevisto das personagens uma necessidade do seu culto externo. De toda parte, à varinha mágica do rei, surgiam barões e viscondes sem conta. Desde logo, com tão perverso oficialismo que se derramou pelas capitanias, renasceu com estranho vigor a antiga corrupção e a venalidade dos magistrados e funcionários, e parecia-se voltar àquele tempo em que frei Manoel do Salvador 2 dizia serem quatro caixas de açúcar as bastantes para vergar a vara da justiça.”

Custou bem caro ao Brasil a permanência por aqui da corte portuguesa, tanto em virtude das despesas fabulosas para atender aos luxos do rei e seus acompanhantes, como para conter as numerosas revoltas que ameaçavam eclodir ou eclodiam por toda a parte.

Quando naquele memorável 7 de setembro de 1822 o Príncipe-Regente D. Pedro, aborrecido com as notícias recebidas de Lisboa anulando alguns de seus atos, lançou o brado retumbante de “Independência ou Morte!”, libertando-nos do jugo português, nossa independência não foi além do terreno político, pois a dívida nacional beirava os 30 milhões de cruzados da época, ou cerca de 3.000.000 de libras esterlinas — o dólar de então.

Ademais, D. João VI, ao retornar para Portugal em 1821 para reassumir o trono ameaçado pela Revolução Constitucionalista do Porto, levou consigo toda a reserva metálica do Banco do Brasil, ameaçando sua estabilidade financeira.

O Ministro da Fazenda, Manoel Jacinto Nogueira da Gama, ressaltou numa exposição feita na Assembleia Legislativa, em 26 de setembro de 1823:

Tenho exposto fielmente a V.M. Imperial o estado em que achei o tesouro público do Rio de Janeiro, e o que nele se sabe do estado da fazenda pública das províncias deste império: tenho igualmente indicado a marcha que me parece devemos seguir, para não somente pagarmos a dívida pública, que tanto nos oprime e desacredita, mas para termos meios consideráveis com que se possa frustrar as tentativas de quaisquer inimigos da nossa independência, e elevar com rapidez este império ao grau de força, de respeito e de opulência, de que é susceptível.(…) Resta-me, finalmente ponderar, que não há tempo a perder, quando se trata de prover o tesouro nacional de modo que se possam por em prática as operações que se julgarem necessárias, muito principalmente na melindrosa situação em que nos achamos: não temamos contrair empenhos, quando se trata de salvar a nação brasileira, e firmar sua independência.”

Começava, assim, nossa dramática odisseia da busca por recursos externos, não para fomentar nosso desenvolvimento futuro e expansão do vigor econômico nacional, mas para cobrir os sucessivos déficits de exercícios anteriores.

Nossa primeira transação do gênero foi feita na poderosa Inglaterra de antanhos, junto às Casas Bazett Tarquhard, Crawford & Co., Fletcher Alexandre & Co. e Thomas Wilson & Co., montando em ₤ 1.333.300 e junto ao banqueiro Nathan Mayer Rothschild, no valor de ₤ 2.352.900, totalizando a quantia de ₤ 3.686.200.

As duas parcelas foram realizadas a 75% e 85% respectivamente, o que significa que quase 20% do total do empréstimo (₤ 686.260) foi para o bolso dos banqueiros logo de cara. Com juros de 5% ao ano e 1% para amortização, assumíamos um compromisso anual de ₤ 221.172 com o serviço da dívida.

Em garantia do empréstimo, foram hipotecadas as rendas das Alfândegas do Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Maranhão, sob a seguinte cláusula:

(...) que se mandaria aos administradores deste ramo no Rio de Janeiro que estabeleçam um fundo particular dos direitos ali recebidos e tão bem dos outros portos de mar, e não se consentiria nunca fazer-se outra qualquer aplicação para os fins gerais do Governo, até que seja remetida uma soma adequada ao pagamento dos interesses deste empréstimo, cuja soma existirá sempre adiantada na cidade de Londres. O Ministro Secretário da Fazenda Visconde de Maricá enviou uma circular às Províncias obrigadas, ordenando-lhes a remessa para Londres de sessenta mil libras esterlinas pelas rendas de suas Alfândegas, devendo achar-se metade desta quantia naquela cidade no 1º de abril, e metade no 1º de outubro de cada ano.” (Do parecer da Comissão de Fazenda da Câmara dos Deputados sobre o relatório do Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda — Visconde de Baependi).”

No final do ano de 1825, do total efetivamente recebido, restava apenas a metade. É interessante examinar a composição do dispêndio da outra metade:

Dispendio 1825

Fonte: Dívida Externa — Análise, Legislação e Documentos Elucidativos (Claudionor de Souza Lemos — Edição da Imprensa Nacional, 1946)

Para complicar um pouco mais nossas finanças, eis que Portugal, em troca da nossa libertação política exigiu, com o apoio da Inglaterra, que o Brasil assumisse a responsabilidade do empréstimo contraído por ele próprio em Londres em outubro de 1823.

A imposição foi aceita no tratado assinado em 29 de agosto de 1825, aprovado por decreto de 10 de abril de 1826.

O preço do reconhecimento de nossa independência por Portugal montou, assim, em 2 milhões de libras esterlinas. Eis o texto original do magnânimo decreto:

“Artigo I — Sua Majestade Imperial convém, à vista das reclamações apresentadas de Governo a Governo, em dar ao de Portugal a soma de dois milhões de libras esterlinas, ficando com esta soma extintas de ambas as partes toda e quaisquer outras reclamações como todo o direito a indenizações desta natureza.

Artigo II — Para o pagamento desta quantia toma Sua Majestade Imperial sobre o Tesouro do Brasil o empréstimo que Portugal tem contraído em Londres no mês de outubro de 1823, pagando o restante, para perfazer os sobreditos dois milhões esterlinos, no prazo de um ano, a quarteis, depois da ratificação e publicação da presente convenção.”

Ou seja, assumimos o compromisso de quitar o saldo de ₤ 1.400.000, relativo ao empréstimo e obrigamo-nos a pagar, em espécie, a importância de ₤ 600.000 correspondente ao restante.

Ao final daquele ano de 1825, apenas 190 anos atrás, nossa dívida externa montava em ₤ 5.086.200, a saber:

Dívida final 1825


Notas:

1 João Batista Ribeiro de Andrade Fernandes (Laranjeiras, 24 de junho de 1860 — Rio de Janeiro, 13 de abril de 1934), mais conhecido como João Ribeiro, foi um jornalista, crítico literário, filólogo, historiador, pintor e tradutor brasileiro. Foi também membro da Academia Brasileira de Letras.[Wikipedia]

2 Frei Manuel Calado do Salvador (Vila Viçosa, 1584 — Lisboa, 12 de junho de 1654) foi um religioso e escritor português.[Wikipedia]

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